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Para Gostar de Ler Volume 10: (Os devaneios do general)

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por:

[Érico Veríssimo]

Narrado em terceira pessoa, a história, situada numa cidadezinha interiorana chamada Jacarecanga passiva e ordeira, dócil e disciplinada, que não fazia nada sem primeiro ouvir o General Chicuta Campolargo, retrata as lembranças do General Chicuta; recordações dum tempo bom que passou. Na casa da neta, último reduto do general Chicuto, passa as horas sozinho, esperando a morte. Tudo mais são recordações patifes! - dum - mundo de homens diferentes dos de hoje. - Canalhas! Levado pela ilusão de vida que a luz traz, o general entreabre os olhos e devaneia... Noutro tempo todos vinham pedir a bênção ao General Chicuta, intendente municipal e chefe político... A oposição comia fogo com ele... Ele mandava e desmandava. Elegia sempre os seus candidatos: derrubava urnas, anulava eleições.

Conforme a sua conveniência, condenava ou absolvia réus. Certa vez mandou dar uma sova num promotor público que não lhe obedeceu a ordem de ser brando na acusação. Noutra ocasião, correu a relho da cidade um juiz que teve o caradurismo de assumir ares de integridade e de opor resistência a uma ordem sua.

O general se lembra do dia em que um artigo desaforado apareceu na Voz de Jacarecanga . Sem assinatura, dizia assim. A hiena sanguinária que bebeu o sangue dos revolucionários de 93, agora tripudia sobre a nossa mísera cidade desgraçada. O general entende ser com ele, não havia dúvida (corria por todo o Estado a sua fama de degolador.) Ele fica furioso, quase estourou de raiva. Tremeu, bufou, enxergou vermelho. Pegou o revólver.

Passado o primeiro impacto, desconfiou de quem pudesse ter vindo tal artigo: Botou a farda de general e dirigiu-se a I ntendência. Mandou chamar o Mendanha, diretor do jornal. O Mendanha veio. Estava pálido. Era atrevido, mas covarde entrou de chapéu na mão, tremendo. O general manda Mendanha sentar, em seguida picou a página em pedacinhos, amassou-os todos numa bola e atochou-a na boca do outro, ordenando que comece. Mendanha suplica com o olhar, ao passo que o general encostava-lhe o revólver no peito e rosnava com raiva.

Para o general, a ordem é Inimigo não se poupa. Ferro neles! Os devaneios do general o levam a 93... Foi lindo. O Rio Grande inteiro cheirava a sangue. Quando do ataque aos inimigos, não ficou nenhum prisioneiro vivo para contar dos outros. Só os corvos voavam sobre o acampamento de cadáveres.

Entre os destroços, o general encontrou conhecidos, antigos camaradas. Teve um leve estremecimento, mas logo a frase veio a mente: inimigos não se pouca. Não remorso. Agora, o general moribundo está nas mãos de Pentronilho, a quem ele chama de negro safado! Petronilho se oferecera para cuidar do velho, sabia que seu pai havia sido morto pelo general: Quis esbofeteá- lo. O mulato reagiu, disselhe desaforos, saiu altivo.

No outro dia... Apesar de menino, Petronilho entendeu tudo e pensou na vingança, mas com o correr do tempo, esqueceu. Como enfermeiro do general, goza, provoca, desrespeita. E fica rindo. Ao pedido de água, Petronilho traz suco de laranja. O velho estribuça desesperado: - Eu disse água! Petronilho encolhe os ombros e responde: - Mas eu digo suco de laranja.

Finalmente, o general se entrega. Petronilho sorri. Já faz três anos que assiste com gozo a esta agonia. Fizera tudo de propósito. Pediu apenas casa, comida e roupa, para cuidar do general. Diante do bisneto, o general contempla-o com tristeza e se perde em divagações... Num mundo de maricas, o mundo de Chiquinho, talvez o último dos Campolargos!

De repente, a criança entra correndo: - Vovô! Vovô! Nas mãos, uma lagartixa verde se retorce, manchada de sangue: - Degolei a lagartixa, vovô. O general se assusta, perde a voz, no choque da surpresa. Depois murmura, comovido: - Seu patife! Seu canalha! Degolou a lagartixa? Muito bem. Inimigo não se poupa. Seu patife! Feliz, afaga a cabeça do bisneto, com uma luz de esperança nos olhos de sáurio.

Érico Veríssimo (1905-1975)
Nasceu em Cruz Alta (RS). Aos dezessete anos produziu seus textos iniciais. Em 1931, já em Porto Alegre, trabalhou na Revista do Globo. Em 1932, saiu o seu primeiro livro, Fantoches (contos) viajou em 1953 para os Estados Unidos, onde dirigiu o Departamento de Assuntos Culturais Pan-Americanos. Dono de uma extensa e premiada obra, publicada em diversos países.