Escritor paranaense, Dalton Trevisan renovou o conto brasileiro, dando-lhe um estatuto próprio. Dono de um estilo objetivo e seco, desnuda em seus contos as pequenas tragédias do cotidiano. Seus personagens atormentam-se e destroem-se, perdidas entre os atos banais de uma existência vazia e medíocre.
Ou seja, num estilo que parte dos lugares-comuns da linguagem urbana brasileira, recriados pela introdução de originalíssimas metáforas, Dalton Trevisan conseguiu criar uma marca própria como ficcionista. Mas o que verdadeiramente fascina em seus contos é a construção de um cenário comum para os mesmos: Curitiba. Cidade feroz - símbolo de todas as grandes cidades brasileiras - em suas ruas mal-iluminadas as pessoas espreitam as outras, em busca de uma companhia para a noite. Alguém já disse que na Curitiba de Dalton Trevisan as pessoas vivem apenas para o amor.Apenas que esse amor curitibano não tem nada a ver com aquele amor que pressupomos autêntico. A humanidade gerada pelo ventre disforme de Curitiba não tem autenticidade: sua forma de amar é degradada, feita de erros, instinto bestial, medo, ressentimento, tédio, traição, vingança e crime.
O conto:
Grandalhão, voz retumbante, é adorado pelos filhos. João não vive bem com Maria - ambiciosa, quer enfeitar a casa de brincos e teteias. Ele ganha pouco, mal pode com os gastos mínimos. Economiza um dinheirinho, lá se foi com a asma do guri, um dente de ouro da mulher. Ela não menos trabalhadeira: faz todo o serviço, engoma a roupinha dos meninos, costura as camisas do marido. Inconformada porém da sorte, humilhando o homem na presença da sogra.
Para não discutir ele apanha o chapéu, bate a porta, bebe no boteco. Um dos pequenos lhe agarra a ponta do paletó:
- Não vá, pai. Por favor, paizinho.
Comove-se de ser chamado de paizinho. Relutante, volta-se para a fulana: em cada olho um grito castanho de ódio.
- O paizinho vai dar uma volta.
Tão grande e forte, embriaga-se fácil com alguns cálices. Estado lastimável, atropelando as palavras, é o palhaço do botequim. E, pior que tudo, sente-se desgraçado, quer aconchego do corpo gostoso da mulher.
Mais discutem, mais ele bebe e falta dinheiro em casa. Maria se emboneca, muito pintada e gasta pelos trabalhos caseiros. Desespero de João e escândalo das famílias, a pobre senhora, feia e nariguda, canta no tanque e diante do espelho as mil marchinhas de carnaval. Os filhos largados na rua, ocupada em depilar sobrancelhas e encurtar a saia - no braço o riso de pulseiras baratas.
Com uma vizinha de má fama inscreve-se no programa de calouros:
- Sou artista exclusiva - ufana-se, com sotaque pernóstico. - A féria é gorda!
Aos colegas de rádio oferece salgadinhos e cerveja. João escapole pelos fundos, envergonhado da barba por fazer. Volta bêbado e Maria tranca a porta do quarto, obrigado a dormir no sofá da sala. Noite de inverno, o filho mais velho, ao escutá-lo gemer, traz um cobertor.
- Durma, paizinho.
A cada sucesso de Maria - o quinto prêmio de marchinha, o retrato no jornal, a carta com pedido de autógrafo:
- Ela ainda recebe vaia - é o comentário de João. - Com uma boa vaia ela aprende!
Ó não - essa aí quem é de cabelo oxigenado? Acompanhada a casa, horas mortas, pelo parceiro de vida artística. Ora o cantor de tangos, ora o mágico de ciências ocultas. Demora-se aos beijos na porta e as mães proíbem as crianças de brincar com os dois meninos. João sabe que é o fim - dona de casa que tinge o cabelo não é séria. Vai dormir puxado na lenha, encolhido na enxerga imunda, a garrafa na mão.
Dois dias fechado [assusta-lhe a própria força e jamais bate nos filhos], urra palavrão e desfere murro na parede. Maria faz as malas e, sem que os pequenos se despeçam de João, muda-se para casa dos pais.
Lá deixa os meninos e amiga-se com um pianista de clube noturno. Mais uma bailarina, que obriga os clientes a beber. O pianista, vicioso e tísico, toma-lhe o dinheiro e, se a féria não é gorda, ainda apanha.
Cansada de surra, volta à casa dos pais. Então a velha sai em busca de João e sugere as pazes.
- Ela que fique onde está. Não quero Maria nem pintada de prata.
Despedido da fábrica por embriaguez, sobrevive com biscates. Ao vestir o paletó, da manga surge uma cobra e, aos berros, lança-o no fogo. Aranha cabeluda morde-lhe a nuca; inútil esmagá-la com o sapato, de uma nascem duas e três - enrodilha-se medroso a um canto e esconde nos joelhos a cabeça.
Domingo recebe a visita dos filhos, enviados pela sogra. Divertem-se no Passeio Público a espiar os macaquinhos. O pai compra amendoim e pipoca, que os três mastigam delicados. Afasta-se de mansinho e, atrás de uma árvore, empina a garrafa saliente no bolso traseiro da calça - as mãos cessam de tremer. Os meninos desviam os olhos: sapato furado, calça rasgada, paletó sem botão. Alisando a mão gigantesca:
- Não, paizinho. Não beba mais, pai.
Lágrimas correm pelo narigão de cogumelo encarnado. Despede-se com sorriso sem dentes. Esquina gorgoleja a cachaça até a última gota.
Em delírio na sarjeta, recolhido três vezes ao hospício. A crise medonha da desintoxicação, solto quinze dias mais tarde. Mal cruza o portão, entra no primeiro boteco.
Maria cai nos braços do mágico de ciências ocultas e, proibida de cantar com voz tão horrorosa, consola-se no tanque de roupa. Nem o amante nem os velhos querem saber dos piás, internados no asilo de órfãos.
Cada um aprende seu ofício e, no último domingo do mês, com permissão da freira, vão bem penteadinhos à casa do pai. Ainda deitado, curte a ressaca; com alguns goles sente-se melhor. Os pequenos varrem a casa, acendem o fogo, olhinho irritado pela fumaça. No almoço apresentam café com pão e salame rosa. Sentado na cama, o pai contenta-se em vê-los comer. Sorri em paz, um deles enxuga-lhe o suor frio da testa. Sem coragem de abandoná-lo, os filhos a seu lado durante a noite: fala bobagem, treme da cabeça aos pés, bolhas de escuma espirram no canto da boca.
Os meninos adormecem, ouvindo o ronco feio do afogado. O maior acorda no meio da noite, vai espiar o pai em sossego, olho branco. Fala com ele, não se mexe. Tem medo e chama o irmão:
- O paizinho morreu.
Sem chorar, encolhidos na beira da cama, à escuta dos pardais da manhã.