[João Guimarães Rosa]
1. Narrador
O conto pertence à obra Sagarana que reúne nove contos nos quais estão presentes os temas básicos de João Guimarães Rosa: a aventura, a morte, a humanização dos animais, as reflexões subjetivas e espiritualistas. Cinco deles - O burrinho pedrês, Duelo, São Marcos, A hora e a vez de Augusto Matraga e Corpo fechado - trazem para os sertões de Minas Gerais peripécias de antigas histórias épicas ou heróicas.
O narrador dos contos de Sagarana muitas vezes caracteriza como folclóricas as histórias que conta, inserindo nelas quadrinhas populares e dando-lhes um tom épico e/ou de histórias de fada. A onisciência do narrador dos contos em terceira pessoa [O burrinho pedrês, A volta do marido pródigo, Sarapalha, Duelo, Conversa de bois e A hora e vez de Augusto Matraga] é propositalmente relativizada, dando voz própria e encantamento às narrativas e acentuando sua dimensão mítica e poética. Repletos de histórias dentro de histórias, de digressões filosóficas e de monólogos interiores que desvendam o universo dos homens, dos bichos e das coisas, os contos de Sagarana nos permitem uma espécie de ritual de iniciação, ao longo da leitura. Esta iniciação ocorre se conseguirmos compreendê-los em sua simbologia, na cosmovisão alógica, mágica, mítica e poética que humaniza em sentido profundo os protagonistas - aparentemente apenas sertanejos dos Gerais - e universaliza o sertão. O sertão é o mundo, diz o Riobaldo de Grande sertão: veredas. De Sagarana, podemos afirmar o mesmo, como veremos no conto a seguir.
2. Enredo
Através do sumário do enredo e do comentário geral, você poderá perceber a grandeza e a coesão da temática abordada.
A hora e vez de Augusto Matraga
Augusto Matraga é um fazendeiro é um fazendeiro violento e beberrão, criador de casos e boêmio, que não respeita as pessoas nem a família. Sua esposa, Dinorá, suporta-o pelo medo que tem da reação do marido se tentar se separar. A filha, por sua vez, não consegue entender por que o pai age dessa maneira.
A mudança na vida de Matraga vem depois de uma emboscada que sofre. Dado como morto, a mulher e a filha vão embora com Ovídio Moura, que quer Dinorá por companheira. Augusto Matraga, moribundo, é socorrido por um casal de pretos, que consegue o milagre de fazê-lo sobreviver aos ferimentos.
Quando se recupera, Augusto vai para longe com o casal, tentando acertar o passo de sua vida, perdida e desregrada. Passa, então, um período de ascese, em que busca o sofrimento como forma de purgar os pecado.
Depois de se dedicar durante muito tempo ao trabalho, sem conforto ou diversão, Matraga decide voltar ao saber que a mulher estava feliz com Ovídio, mas a filha havia se prostituído.
Na viagem, reencontra o chefe jagunço Joãozinho Bem-Bem, que havia hospedado em sua casa, e com quem fizera amizade.
Mas Augusto e o chefe jagunço se desentendem, pois este queria vingar a morte de um capanga e, na ausência do assassino, pretendia matar alguém de sua família. Matraga acha isso injusto e enfrenta o parente Joãozinho Bem-Bem.
No final do conto, ambos morrem, mas Augusto para ter consigo a sensação do dever cumprido.
3. Comentário geral
A hora e vez de Augusto Matraga, finalmente, é uma história de redenção e espiritualidade, uma história de conversão.
Ao longo do seu enredo o protagonista, Augusto Matraga, passa do mal ao bem, da perdição à salvação. O agente desta passagem é o jagunço Joãozinho Bem-Bem. Podemos associar a ele o ditado: Deus escreve certo por linhas tortas, pois é o malvado Joãozinho Bem-Bem que permite a morte gloriosa e salvadora de Matraga. A dualidade entre o bem e o mal parece marcar esse mundo de jagunços e fazendeiros, no qual há a possibilidade de conversão quando chega a vez e a hora certa das pessoas, como ocorreu com Matraga.
4- Linguagem
Não é de estranhar que se compare ou se associe a linguagem de Guimarães Rosa ao estilo Barroco, pois em ambos encontramos os jogos de palavras, o prazer lúdico, quase infantil, dos trocadilhos, das associações inesperadas de imagens, do trabalho sonoro e poético com a prosa.
A pontuação das frases de Guimarães Rosa também está ligada a esta preocupação lúdica com a linguagem, que lembra o estilo Barroco: trata-se sempre de associar o jogo de palavras aos elementos da narrativa [personagens, narrador, enredo, etc.] Com a pontuação, ele busca um ritmo que só pode ser encontrado na poesia do sertão, na marcha das boiadas, na passagem lenta e imperceptível do tempo, no bater das asas dos periquitos, no balançar sinuoso das folhas do buriti.
Guimarães Rosa é, em conclusão, o criador de uma obra em que elementos da cultura popular e elementos da cultura erudita se mesclam para reinventar a força da linguagem sertaneja e mineira. Conhecedor de pelo menos dezoito idiomas, ao lado das palavras que traz do vocabulário sertanejo há várias construções importadas do latim, do francês, do inglês e do alemão em seus livros. Poucos como ele têm a capacidade de reunir a erudição das reflexões filosóficas à transposição do imaginário popular, sem menosprezar as primeiras, e simplificando o segundo.
Pergunta
1. Em A hora e vez de Augusto Matraga, sabemos que o protagonista passa por uma grande transformação ao longo do conto. De que transformação se trata e quais as suas consequências para o personagem?
De homem boêmio e violento, que maltratava a mulher, a filha e todas as pessoas que o rodeavam, Augusto Matraga transforma-se num penitente, num pecador em busca de ascese, da conversão ao mundo de Deus. O significado desta transformação é crucial para o contexto geral de Sagarana na medida em que esta obra tematiza exatamente o bem e o mal, o acaso, os milagres, a física, os desencontros e encontros do homem no universo mitológico do sertão.