Narrado em 3ª pessoa, o narrador mergulha no universo infantil de uma criança especial. Ivan Angelo parece incorporar toda aquela investigação psíquica clariceana. Como Ana de Clarice Lispector, Ana Lúcia aqui apresenta, em princípio, as mesmas inquietações como contar até um número, por exemplo dez, ou doze e ver o que acontece ou gritar de olhos fechados e, abrindo-os, esperar que tudo houvesse desaparecido. E era isso para Ana Lúcia um processo de aprendizagem intenso em que ela saía sempre um pouco mais velha.
As inquietações de Ana são de clara natureza existencial: bom mesmo era fazer nada, nem pensar, mas isso só às vezes conseguia, e era impossível gozar o momento, sempre passado. Para essa reflexão, o ponto de partida da menina foi a escola, universo transgressor da liberdade do pensar: Achava péssimo ir à escola, a professora era horrível. É como se o universo adulto, cheio de regras, podasse o que ela mais gostava; pensar sem ninguém perto porque aí podia ir avançando até se perder, brincar de santa, dormir, comer doce. Assim, Ana ia cada vez sabendo mais.
A lacuna decorrente da ausência paterna revela a crise de Ana que afinava-se embaraçada de não conseguir dizer papai do modo de Tita ou Nina. Omitir a verdade é uma prática do universo adulto, e a mãe de Ana não revela que é separada, desquitada. A descoberta desta palavra (desquitada) soa para Ana como agressão e se dá numa aprendizagem dolorosa. Para Ana, o pai está viajando, mas não é a verdade, e os outros sabem disso: - Mentirosa! Sua mãe é desquitada. Assim de supetão, deixou Ana impotente diante da palavra desconhecida. E num lance de sadismo diante do sofrimento da outra, para invocar a causa secreta machadiana, Tita corada e brilhante de prazer na sua frente.
O prazer de ter trazido a tona uma verdade que Ana desconhecia, o prazer no desconforto de Ana. Agora a necessidade da dimensão semântica de desquitada. Em princípio, tenta solucionar sozinha, mas isso extrapola sua capacidade. Sofre com as hipóteses levantadas: Seria uma coisa como burra, feia? Flor? Flor parecia, mas não explicava nada [ ...] Tita dissera como quem diz [ ...] sem-vergonha. Sim! Ana tenta defender a mãe amando-a, amou-a até sentir lágrimas, defendendo-a contra a palavra que poderia feri-la. O aprendizado precisa ir em frente: A professora feia! Quando ela perguntar se alguém tem dúvida. Por que não a professora? Talvez ela fosse boa, mas veio a frustração. A timidez produziu insegurança, e Ana não sabe se senta ou chora. A situação se agrava diante do riso: Helenice e seus dentes enormes impossibilitando tudo. As meninas riem, insuportáveis. É o desmoronamento. A professora, irritada, ordena sente-se.
Em casa Ana contempla a mãe: Que bonita que a mãe era, com os alfinetes na boca. Ana atua como uma analista investigando o mundo interior das pessoas: Gostava de olha-la (a mãe) calada, estudando seus gestos, enquanto recortava retalhos de pano com a tesoura. Agora Ana tem pressa em perguntar para a mãe: A mãe saberia o que ela queria perguntar-lhe intensamente agora quase com fome depressa depressa antes de morrer e fuzila:
- Mamãe, o que é desquitada?
[...]
- Desquitada é quando o marido vai embora e a mãe fica cuidando dos filhos.
Então veio o alívio: Desquitada, desquitada, desquitada, repetiu sem medo. Sentia-se completa e nova. Agora não precisava amar a mãe com aquela força de antes. Assim, ia Ana Lúcia aprendendo, descobrindo: o que ela chama de marido é o que eu chamo de pai. Ela sabia cada vez mais.
Ivan Angelo (1936...)
Nasceu em Barbacena (MG) e já em 1954 escrevia
contos. Em Belo Horizonte, integrou-se, em 1957, ao grupo
da revista de arte e cultura Complemento. Pelo livro de
contos Homem sofrendo no quarto recebeu o prêmio
literário Cidade de Belo Horizonte, em 1959. Dois anos mais
tarde publicava seu primeiro livro de contos, Duas faces.
Em 1976, lançou A festa, romance pelo qual recebeu o
troféu Jabuti. Além de escritor é também jornalista.